ARTIGO ORIGINAL
Benefício da reabilitação da função vestibular como estratégia terapêutica na susceptibilidade à cinetose na infância
Benefits of vestibular rehabilitation as a therapeutic strategy for motion sickness susceptibility in childhood
Viviann Magalhães Silva Borges1, Pricila Sleifer1
1Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil
Recebido em: 9 de Maio de 2025; Aceito em: 16 de Maio de 2025.
Correspondência: Viviann Magalhães Silva Borges, viviann.msb@gmail.com
Como citar
Borges VMS, Sleifer P. Benefício da reabilitação da função vestibular como estratégia terapêutica na susceptibilidade à cinetose na infância. Fisioter Bras. 2025;26(3):2213-2223. doi:10.62827/fb.v26i3.1063
Introdução: O conflito entre as informações sensoriais provenientes da interação vestíbulo-visual ou de disfunções intra vestibulares desencadeia o sintoma denominado cinetose, que leva a uma intolerância ao movimento. Apresenta alta prevalência em crianças e, quando não tratado pode atrasar o desenvolvimento motor e o aprendizado. Uma possibilidade de tratamento é a reabilitação da função vestibular (RFV), que tem apresentado bons resultados no público infantil. Objetivo: Verificar o efeito de um protocolo de reabilitação da função vestibular em crianças com suscetibilidade à cinetose, bem como verificar possíveis diferenças entre os sexos, e comparar a autopercepção da cinetose com a percepção dos pais sobre o sintoma da criança. Métodos: Foram selecionadas crianças provenientes de escolas públicas, que apresentavam suscetibilidade à cinetose, avaliada com o questionário Motion Sickness Susceptibility Questionnaire (MSA). Todas as crianças realizaram exames audiológicos, avaliação da função cerebelar, avaliação da acuidade visual e avaliação do equilíbrio estático e dinâmico. Realizou-se protocolo de Cawthorne e Cooksey adaptado para a RFV e as crianças foram reavaliadas após 16 sessões de reabilitação. Resultados: Foram incluídas 34 crianças com 10 e 11 anos de idade. Na comparação entre os sexos, não verificou-se significância estatística na comparação da pontuação do MSA (p=0,097). Em relação ao MSA, comparando os resultados obtidos com pais e crianças, verificou-se diferença significativa (p=0,016) com pontuação maior nas respostas das crianças. Conclusão: As crianças apresentaram melhora nos sintomas de cinetose após programa de RFV, observada por meio da redução da pontuação do MSA.
Palavras-chave: Enjoo Devido ao Movimento; Criança; Reabilitação; Equilíbrio Postural.
Introduction: Conflicting sensory information from vestibulo-visual interaction or intra-vestibular dysfunction triggers the symptom known as motion sickness, which leads to movement intolerance. It is highly prevalent in children and can delay motor development and learning if left untreated. One possibility for treatment is vestibular rehabilitation (VR), which has had positive results in children. Objective: To verify the impact of a vestibular rehabilitation program on motion sickness susceptible children, as well as to check for possible differences between the genders, and to compare the self-perception of motion sickness with the parents’ perception of the child’s symptom. Methods: Motion sickness susceptible children were recruited from public schools and assessed by the Motion Sickness Susceptibility Questionnaire (MSA). All children underwent audiological tests, cerebellar function assessment, visual acuity assessment and static and dynamic balance assessment. Cawthorne and Cooksey protocol was adapted for VR and the children were assessed again after 16 rehabilitation sessions. Results: 34 children aged 10 and 11 were included. When comparing the genders, there was no statistical significance when comparing the MSA score (p=0.097). Regarding the MSA, comparing the results obtained from parents and children, there was a significant difference (p=0.016) with higher scores in the children’s responses. Conclusion: After the VR program, the children presented an improvement in their motion sickness symptoms, which was observed by reducing their MSA scores.
Keywords: Motion Sickness; Child; Rehabilitation; Postural Balance.
O processamento das informações advindas dos sistemas sensoriais (visual, vestibular e proprioceptivo) e do sistema musculoesquelético, no Sistema Nervoso Central (SNC) resulta no equilíbrio corporal, um fenômeno sensório-motor. Para que o indivíduo mantenha sua postura corporal estável em diferentes situações do dia a dia, é imprescindível que cada sistema esteja íntegro. Contudo, é igualmente necessário que o processamento central ocorra adequadamente, para que a criança não tenha sintomas de tontura ou vertigem [1].
Quando há um conflito entre as informações sensoriais provenientes da interação vestíbulo-visual ou de disfunções intra vestibulares, ocorre o sintoma denominado cinetose, que leva a uma intolerância ao movimento, podendo ser desencadeado por alterações periféricas ou centrais [1,2,3]. Na presença de uma cinetose, a criança pode apresentar também sonolência, tontura, náusea, palidez, sudorese fria, dor de cabeça, vômito e apatia, desencadeados em ambientes geradores de movimento passivo como veículos e brinquedos, ou ambientes que provoquem a sensação de movimento passivo como ambientes de realidade virtual [3,4,5].
Na população infantil a cinetose é frequente, porém o difícil diagnóstico acaba subestimando a prevalência nesse grupo específico [1,3,6,7]. Atualmente, a prevalência relatada é estimada entre 35 a 43%, contudo há estudos citando uma prevalência de 89,7%, demonstrando uma variabilidade que pode ser justificada pelo baixo índice de diagnósticos [6,8,9]. Importante ressaltar que a incidência da cinetose é maior em idade escolar, entre os 7 e 12 anos, e o sintoma também é mais frequente em meninas [4,8,9,10].
A dificuldade no diagnóstico observada pode estar associada ao fato de que a mensuração e a avaliação da cinetose têm caráter subjetivo, que considera o conjunto de sinais e o histórico clínico do paciente. Para o público infantil relatar seus sintomas é um desafio, pois quanto mais jovens, menor a exatidão com que conseguem expressar o que sentem. Ademais, os adultos responsáveis frequentemente correlacionam sinais a outras hipóteses diagnósticas, iniciando a investigação de quadros não relacionados ao sistema vestibular e ao equilíbrio corporal, o que consequentemente atrasa uma abordagem mais adequada [11].
Nesse contexto, um recurso terapêutico que pode ser utilizado em casos de disfunções associadas ao equilíbrio corporal é a reabilitação da função vestibular (RFV), na qual são realizados exercícios e manobras que visam estimular e reorganizar o sistema vestibular para cessar sintomas de tontura e vertigem [12]. Ao estimular as vias vestibulares, a RFV propicia, por meio de mecanismos de neuroplasticidade, a compensação do sistema vestibular, com resultados rápidos e duradouros, além de não serem reportados efeitos adversos ou contraindicações na literatura atual [12,13].
Apesar de ser um recurso acessível, ainda observa-se escassez de estudos acerca da efetividade da RFV para os casos de cinetose em crianças. Sendo assim, considerando a alta prevalência dessa condição na infância e os prejuízos que alterações associadas ao equilíbrio corporal podem causar ao desenvolvimento, o presente estudo teve como objetivos verificar o efeito de um protocolo de reabilitação da função vestibular em crianças com suscetibilidade à cinetose, bem como verificar possíveis diferenças entre os sexos, e comparar a autopercepção da cinetose com a percepção dos pais sobre o sintoma da criança.
Ensaio clínico, com amostragem não probabilística por conveniência, composta por crianças com idade de 10 e 11 anos, provenientes de escolas da rede pública do município de Porto Alegre.
Como critérios de inclusão, foram estabelecidos:
a) apresentar queixa de cinetose e obter pontuação maior ou igual a 18 no protocolo Motion Sickness Susceptibility Questionnaire Short Form, o Motion Sickness A (MSA);
b) possuir aspecto visual de orelha externa, meato acústico externo e membrana timpânica dentro dos padrões de normalidade em ambas as orelhas;
c) apresentar limiares auditivos ≤15 dBNA em ambas as orelhas nas frequências de 500Hz, 1000Hz, 2000Hz, 3000Hz e 4000Hz, padrão de normalidade de acordo com a classificação da Organização Mundial de Saúde (OMS) [14];
d) obter a curva timpanométrica tipo A (Jerger, 1970) e a presença de reflexos acústicos ipsilaterais e contralaterais em ambas as orelhas, como resultado das Medidas de Imitância Acústica [15];
e) possuir acuidade visual igual ou superior a 1,0 em ambos os olhos, verificada com a Escala de Sinais de Snellen.
Como critérios de exclusão foram considerados o diagnóstico médico de alterações genéticas, psiquiátricas, neurológicas e/ou cognitivas que tenham implicações sobre o equilíbrio corporal, além de perda auditiva e/ou deficiência visual.
Inicialmente, todas as crianças realizaram avaliação auditiva, da acuidade visual e de equilíbrio corporal. Para avaliação audiológica, foram realizadas a meatoscopia, a audiometria tonal liminar, a audiometria vocal e as medidas de imitância acústica. Na avaliação da acuidade visual, foi utilizada a Escala de Sinais de Snellen, conforme orientações do Ministério da Educação e Ministério da Saúde (2016) [16], sendo que o resultado correspondeu ao número decimal ao lado esquerdo da última linha em que a criança conseguiu visualizar adequadamente mais da metade dos estímulos.
A avaliação de equilíbrio estático e dinâmico foi conduzida conforme orientações sugeridas na literatura, com as provas Teste de Romberg, Teste de Romberg-Barré, Teste de Babinski-Weil e Teste de Unterberg [17]. Cada prova foi realizada com olhos abertos e com olhos fechados. Ademais, incluíram-se provas de avaliação da função cerebelar, sendo elas: Diadococinesia, Braços estendidos e Índex-nariz-joelho, realizadas com olhos abertos e, após, com olhos fechados [17,18].
Realizou-se também avaliação antropométrica das crianças. A medida do peso corporal foi realizada utilizando balança digital e para medida de altura foi solicitado que ficasse em pé olhando para frente, encostada de costas para parede onde estava posicionada uma fita métrica. A análise das respostas de peso e altura para idade foi feita por meio dos softwares Anthro [19] e AnthroPlus [20] da Organização Mundial de Saúde.
Na sequência, foi aplicado, em entrevista direta e individual, com duração aproximada entre quatro e seis minutos, o questionário MSA com as crianças e seus responsáveis, para avaliar a efetividade do programa de RFV, por meio da comparação de seus resultados antes e após a reabilitação. Este instrumento consiste em um questionário que tem como objetivo avaliar a suscetibilidade à cinetose. O questionário apresenta nove estímulos e/ou ambientes que podem desencadear a cinetose, sendo eles meios de transporte (carros, ônibus ou vans, trens, aviões, barcos pequenos, e navios ou balsas) ou de entretenimento (balanços em parquinhos, gira-gira em parquinhos e brinquedos em parques de diversões), e o participante deve responder o que mais enquadra-se com a sua experiência, podendo escolher entre cinco opções, sendo elas: “nunca experimentou”, “nunca ficava enjoado”, “raramente ficava enjoado”, “às vezes ficava enjoado” e “sempre ficava enjoado”, com pontuação entre 0 e 3. O escore total foi obtido através da fórmula matemática: (escore total = pontuação MSA x 9) / (9 – número de transportes não utilizados). A pontuação mínima é de zero pontos e a máxima de 27 pontos, sendo que maiores pontuações indicam a presença do sintoma à exposição a mais estímulos, o que sugere quadros clínicos piores.
No presente estudo, foi utilizada a versão traduzida e adaptada para o português por França e Branco-Barreiro (2013) [21], sendo que a aplicação do questionário foi realizada em momentos distintos com as crianças e seus responsáveis. A duração de cada entrevista foi de quatro a seis minutos com cada um dos indivíduos, e o ponto de corte da pontuação para participar das sessões de RFV foi de 18 pontos.
Após a conclusão das avaliações, todas as crianças que se encaixavam nos critérios de inclusão foram convidadas a realizar um programa de RFV, baseado no protocolo abreviado de Cawthorne (1944) [22] e Cooksey (1946) [23], que envolve movimentos de cabeça, tronco e olhos para diversas direções, e exercícios de controle postural em diferentes posições, que são realizados com olhos abertos ou fechados. Os exercícios ocorreram ao longo de 16 sessões, realizadas em grupos de 4 crianças cada, com o acompanhamento e orientação dos pesquisadores. As sessões ocorreram duas vezes por semana, com duração média de 45 minutos cada. Os exercícios foram realizados em cada uma das crianças por 10 vezes, de maneira lenta e após de maneira rápida.
Com relação à análise estatística dos dados, utilizaram-se as frequências absoluta e relativa para descrição de variáveis categóricas, e média, desvio padrão e medianas para as variáveis quantitativas. A associação entre variáveis categóricas foi calculada por meio do teste Qui-quadrado de Pearson. As comparações de desfechos com variáveis quantitativas foram calculadas com o teste de normalidade, respeitando os seguintes critérios: se normal, no modelo para comparação utilizou-se o teste t ou ANOVA; se assimétrica, o modelo foi o Teste de Mann-Whitney ou Kruskal-Wallis, dependendo do número de categorias. Para confirmar relações entre as variáveis foi realizada a Regressão de Poisson sendo calculados a Razão de Prevalência e seu Intervalo de Confiança. O nível de significância adotado foi de 5% (p<0,05).
A amostra foi composta por 34 pacientes elegíveis para o estudo, com idade de 10 a 11 anos, sendo 22 crianças (64,7%) do sexo feminino, e 12 crianças (35,3%) do sexo masculino. Os participantes são estudantes do quarto e quinto ano do ensino fundamental de escolas da rede pública de XXXXX. Na avaliação de equilíbrio estático e dinâmico e nos testes de função cerebelar, nenhuma das crianças apresentou alterações nas provas realizadas.
Verificou-se, também, que do total da amostra, 20 crianças (58,8%) não praticam atividade física fora do horário escolar, sendo seu único contato com atividades físicas durante as aulas de educação física da escola. Os responsáveis por esse percentual de crianças da amostra referiram que estas são crianças sedentárias e que realizam poucas atividades ao ar livre. Além disso, ressalta-se que, em relação aos dados antropométricos, 17 crianças (50%) apresentaram risco de sobrepeso.
Na tabela 1, observam-se os resultados do questionário MSA aplicado com as crianças antes e após a RFV. Houve diferença estatisticamente significativa (p=0.001), evidenciando melhora da sensação de cinetose após RFV.
Tabela 1 - Resultados do questionário MSA pré e pós Reabilitação da Função Vestibular (n=34)
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Questionário MAS [pontuação mínimo-máximo] |
p-valor* |
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Pré RFV Média ± DP |
20 ± 4 [18-27] |
0.001* |
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Pós RFV Média ± DP |
12 ± 5 [3-21] |
*Test Wilcoxon.
Legenda: MSA = Motion Sickness A; RFV = reabilitação da função vestibular.
Em comparação da mediana das respostas das crianças com as dos responsáveis antes da RFV, observou-se maior pontuação quando o questionário foi realizado com as crianças. A diferença foi estatisticamente significativa (p=0,018), o que demonstra que as crianças referem mais os sintomas que seus responsáveis.
Tabela 2 - Comparação das medianas do MSA realizado com mães e pais e com os filhos pré reabilitação vestibular
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Mediana MSA Filhos |
Mediana MSA Pais |
Diferença |
P-valor* |
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20,00 |
15,00 |
5,00 |
0,016 |
Legenda: MSA Motion Sickness A.
*Friedman’s
Acerca dos fatores desencadeantes, observou-se que os brinquedos que receberam maiores pontuações foram gira-gira e balanços, e os veículos foram ônibus e carro. Cabe ressaltar, que somente uma criança (2,9%) experimentou andar de avião alguma vez, uma (2,9%) experimentou andar em barco pequeno e três (8,8%) experimentaram andar de navios ou balsas. Evidencia-se, ainda, que oito crianças (23,5%) da amostra têm episódios frequentes de vômito quando andam de carro, desde muito pequenos.
Importante mencionar que para o item “trens”, as avaliadoras ofereceram a opção de considerar o XXXXX, pois é o meio de transporte de trilhos disponível na cidade. Do total da amostra, 14 crianças declararam não ter experiência com transportes de trilhos.
Na população infantil a susceptibilidade à cinetose é frequente, porém estudos referem uma variabilidade considerável na prevalência em relação à faixa etária. Crianças de até 2 anos de idade são mais resistentes à cinetose devido à maior dependência do sistema visual e seu uso de forma limitada para orientação espacial dinâmica e autopercepção de movimento, o que as deixaria menos suscetíveis a um conflito entre informações visuais e vestibulares [24]. Posteriormente a susceptibilidade aumenta, atingindo o pico entre as idades de 7 a 12 anos e diminuindo, a partir de então, até a idade adulta [6,8,25]. No que diz respeito à variável sexo, os estudos apontam para uma maior incidência no sexo feminino [26, 27], o que foi observado na presente amostra, com maior percentual de meninas participantes do estudo. Entretanto, ainda não há consenso acerca dos fatores que justificam esta diferença.
Apesar de frequente, a condição de cinetose na infância ainda é subdiagnosticada, possivelmente por suas manifestações clínicas não serem associadas a alterações vestibulares. Na amostra do presente estudo evidenciou-se que a autopercepção da condição pelas crianças foi maior que a percepção dos pais. Este dado corrobora achados de outro estudo que identificou que apenas 9,8% dos pais souberam informar se o filho refere desconforto ao brincar com brinquedos estimulantes ao sistema vestibular. O mesmo estudo traz o dado de que 71,7% dos pais participantes referiram não conhecerem o sistema vestibular e não terem conhecimento sobre sua função no desenvolvimento infantil [28]. Por isso, ressalta-se a importância da orientação aos responsáveis acerca dos principais sinais clínicos e fatores de risco para piora dos sintomas, para possibilitar o encaminhamento para diagnóstico e tratamento precoces.
Um dos fatores que contribuem para a melhora na sensação de cinetose é a exposição aos movimentos que desencadeiam os sintomas de tontura e náusea, devido a um fenômeno de neuroplasticidade chamado de habituação [12]. Uma das formas de habituação seria por meio da prática de atividade física regular, conforme verificado em um estudo com patinadoras que apresentaram menos queixa de cinetose e náuseas após os movimentos da patinação [29] e em outro estudo [30] cuja prevalência de suscetibilidade à cinetose foi menor em adultos que praticam exercícios físicos desde idade inferior a 18 anos, o que sugere benefício desta prática para a redução do sintoma. Contudo, observou-se na amostra do presente estudo que 58,8% das crianças não praticam atividade física regular, sendo, portanto, sedentárias. Uma hipótese é de que as crianças evitem a prática de exercícios que possam desencadear tontura, porém o sedentarismo pode prejudicar o processo de habituação, além de estar associado a demais fatores deletérios ao desenvolvimento infantil como o sobrepeso e a obesidade.
Do total de crianças participantes, 50% apresentaram risco de sobrepeso. Estes dados são semelhantes aos resultados de uma revisão sistemática recente que verificou prevalência aumentada de obesidade em crianças de 6 a 9 anos, além de observar maior prevalência nas regiões Sul e Sudeste do Brasil [31]. Cabe ressaltar que, apesar de a amostra ser de crianças provenientes de escolas públicas, outros estudos observaram uma associação entre maior poder aquisitivo e risco para obesidade, o que sugere que o acesso à alimentação em abundância não garante a qualidade nutricional dos alimentos [31, 32]. Em relação à cinetose, alguns estudos identificaram uma associação entre intervenções com enfoque na alimentação e a redução no sintoma, conforme evidenciado em revisão recente [33]. Sendo assim, reforça-se a importância de ações de orientação às famílias quanto aos diversos fatores de prevenção de alterações associadas ao equilíbrio corporal, considerando inclusive o impacto dos hábitos de vida sobre o desenvolvimento da criança.
No presente estudo, uma estratégia para contribuir com a conscientização sobre a cinetose e alterações de equilíbrio corporal na infância, foi a realização de ações de orientação para os pais e professores, além da elaboração de folders informativos que foram entregues impressos nas escolas durante as ações.
A habituação também pode ser trabalhada com um programa de RFV personalizado. Evidencia-se que os estímulos que mais desencadearam enjoo na presente amostra foram os brinquedos gira-gira e balanço, e os veículos carro e ônibus o que alerta para o fato de que a criança pode ter a manifestação da cinetose em um ambiente cotidiano. Em casos que os episódios de cinetose estão frequentes e a criança não consegue realizar exercícios, a RFV pode ser uma alternativa para que, a partir da exposição a estímulos graduais, a habituação seja estabelecida e o exercício seja tolerado futuramente [12]. O benefício da RFV para crianças foi observado em estudos prévios [12,34], contudo ainda há escassez de ensaios clínicos com a população infantil.
Em adultos e idosos, há mais evidências disponíveis, inclusive com a observação da alteração em exames de imagem e melhora no controle postural após uma sessão de cinco repetições de exercícios para treinar o reflexo vestíbulo-ocular [35,36]. Porém, destaca-se que o prejuízo decorrente deste sintoma na infância pode exceder aos sinais físicos e interferir no desenvolvimento das habilidades sociais e, consequentemente, cognitivas. A literatura aponta, por exemplo, para uma associação entre a manutenção do equilíbrio estático e a leitura, uma vez que o reflexo vestíbulo-ocular precisa estar íntegro para o processo de leitura, que engloba habilidades como a percepção espacial e movimentos oculares. A dificuldade na leitura prejudica a alfabetização e impacta no desempenho escolar e no desenvolvimento cognitivo [1,37].
Como limitação da pesquisa, salienta-se que poucas crianças da amostra tiveram alguma experiência com avião, barcos pequenos, navios ou balsas, ou com transportes de trilhos, o que pode ter interferido na pontuação do questionário, que acredita-se que poderia ser maior. Entretanto, acredita-se que os achados do presente estudo são úteis para demonstrar o benefício da RFV nesta população, levando-se em consideração que a cinetose pode permanecer até a vida adulta e é uma condição debilitante.
Verificou-se que a intervenção com a reabilitação da função vestibular realizada a partir dos exercícios de Cawthorne e Cooksey foi eficaz para reduzir a susceptibilidade à cinetose no público infantil. Ademais, verificou-se que a proporção de meninas na amostra foi maior, e a autopercepção do sintoma de cinetose pelas crianças foi maior do que a percepção de seus pais, conforme observado na pontuação do questionário MSA. Sugere-se a realização de mais ensaios clínicos na população infantil, para a elaboração de dados mais robustos.
Conflitos de interesse
Os autores declaram não haver conflitos de interesse de qualquer natureza.
Fontes de financiamento
Não houve financiamento.
Contribuição dos autores
Concepção e desenho da pesquisa: Borges VMS, Sleifer P; Coleta de dados: Borges VMS, Sleifer P; Análise e interpretação dos dados: Borges VMS, Sleifer P; Análise estatística: Sleifer P; Redação do manuscrito: Borges VMS, Sleifer P; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Borges VMS, Sleifer P.
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