ARTIGO DE OPINIÃO
A primeira impressão humana é a que fica: ponto de vista sobre Inteligência Artificial na Medicina
Marco Antônio Orsini1, Micheli Verginia Ghiggi2, Marcos RG de Freitas3, Carlos Henrique Melo Reis1, Marco Antônio Araújo-Leite3, Acary Souza Bulle Oliveira4, Luciana Armada5
1Universidade Iguaçu (UNIG), Nova Iguaçu, RJ, Brasil
2Instituto de Educação Física da Universidade Federal Fluminense, (UFF), Niterói, RJ, Brasil
3Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil
4Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil
5Programa de Pós-Graduação em Vigilância em Saúde, Universidade Iguaçu (UNIG), Programa de Pós-Graduação em Odontologia, Universidade Estácio de Sá, Nova Iguaçu, RJ, Brasil
Recebido em: 20 de Junho de 2025; Aceito em: 30 de Junho de 2025.
Correspondência: Marco Antônio Orsini, orsinimarco@hotmail.com
Como citar
Orsini MA., Ghiggi MV, RG de Freitas M., Reis CHM, Araújo-Leite MA, Oliveira ASB, Armada L. A primeira impressão humana é a que fica: ponto de vista sobre Inteligência Artificial na Medicina. Enferm Bras. 2025;24(3):2541-2546. doi:10.62827/eb.v24i3.4072
Na esteira de um pensamento crítico e profundo, tememos que o uso de ferramentas de Inteligência Artificial (IA) na prática médica possa impactar negativamente as habilidades de pensamento crítico. Traços humanos, incluindo empatia, inteligência social e emocional, capacidade e disposição para pensar profundamente e aplicação de julgamento moral, além do bem-estar mental, podem chegar ao nadir na próxima década. Este artigo de opinião alerta para os riscos de um distanciamento do conhecimento e do pensamento na análise dos atendimentos, além da diminuição da autonomia profissional na medicina clínica. Seremos somente assistentes digitais ou médicos capazes de realizar tarefas e diagnósticos de forma independente?
Palavras-chave: Inteligência Artificial; Pensamento; Medicina Clínica; Autonomia Profissional; Conhecimento.
The first human impression is the one that lasts: a point of view on Artificial Intelligence in Medicine
In the wake of critical and deep thinking, we fear that the use of Artificial Intelligence (AI) tools in medical practice may negatively impact critical thinking skills. Human traits including empathy, social and emotional intelligence, the capacity and willingness to think deeply and apply moral judgment, and mental well-being may reach their nadir in the next decade. This opinion article warns of the risks of a distancing of knowledge and thought in the analysis of care, in addition to the increase in professional autonomy in clinical medicine. Will we be just digital assistants or doctors capable of performing tasks and diagnoses independently?
Keywords: Artificial Intelligence; Thought; Clinical Medicine; Professional Autonomy; Knowledge.
La primera impresión humana es la que perdura: punto de vista sobre la Inteligencia Artificial en la Medicina
Tras el pensamiento crítico y profundo, tememos que el uso de herramientas de (Inteligencia Artificial) IA en la práctica médica pueda afectar negativamente las habilidades de pensamiento crítico. Rasgos humanos como la empatía, la inteligencia social y emocional, la capacidad y disposición para pensar profundamente y aplicar el juicio moral, y el bienestar mental podrían alcanzar su punto más bajo en la próxima década. Este artículo de opinión advierte sobre los riesgos de un distanciamiento del conocimiento y el pensamiento en el análisis de la atención, además del aumento de la autonomía profesional en la medicina clínica. ¿Seremos solo asistentes digitales o médicos capaces de realizar tareas y diagnósticos de forma independiente?
Palabras-clave: Inteligencia Artificial; Pensamiento; Medicina Clínica; Autonomía Profesional; Conocimiento.
Não se questiona a importância de Galileu Galilei (1564-1642), René Descartes (1596-1650) e Augusto Comte (1798-1857) na consolidação das bases científicas das ciências, mas cabe ao primeiro o destaque como o pai do que é hoje denominado ciência moderna [1]. Não obstante, o médico, mesmo com os seus cinco sentidos, não está sendo capaz de perceber e interpretar os avanços das ciências. E mais distante ainda de compreender os escapes da física quântica, as brechas ofertadas por quem chamamos de povos primitivos ou os fenômenos naturais que desprezamos pela falta de evidência metodológica.
Há pouca consciência de que estamos sendo influenciados por uma Inteligência Artificial que se propõe a substituir seu criador humano em seu pensamento analógico. E, numa visão distópica, sem que se compreendam claramente os riscos existenciais oferecidos “por essas máquinas ditas superinteligentes” [2], tampouco as análises do exoma (conjunto de todas as regiões codificadoras do DNA humano), entre outras ferramentas importantes para o diagnóstico e terapias futuras [2].
Na instantaneidade do mundo digital, oposta ao ritmo analógico, há uma contaminação crescente das nossas conversas, reduzidas, cada vez mais, a uma superficialidade que esvazia o papel da história clínica. A conversa tornou-se irrelevante, quase dispensável. A semiologia médica e a propedêutica clínica tornam-se obsoletas, minando a arte médica [3].
O desafio diagnóstico atormenta e expõe nossos receios diante da crítica do outro. Tornamo-nos reféns de estudos científicos que, muitas vezes, não se sustentam em reprodutibilidade experimental, mas são amplamente divulgados sem o devido rigor. Alguns médicos, limitados por acordos com a indústria, não se expressam plenamente. A estatística pobre se converte em verdade absoluta quando ancorada em gráficos sedutores. A apatia intelectual toma conta, e não é a preguiça iluminada dos gregos.
A opinião do especialista passou a valer mais que a experiência do clínico comum. Mas quem é o especialista quando se fala de temas que deveriam ser acessíveis a qualquer médico? A “harmonização facial” talvez seja o exemplo mais evidente da estética sobre a ética a miséria confortável de uma ciência que perdeu o senso crítico.
Se não sairmos logo desse processo de mediocrização, flertaremos com o colapso cognitivo como espécie [4]. Estamos perdendo a capacidade de interagir, contradizer e improvisar. Quando dizemos que seguimos praticando medicina mesmo sem consensos, não falamos de desordem, mas de uma organização psíquica que estrutura nossos blocos subjetivos com segurança.
Devemos repensar o desvio desse eixo de pensamento estéril. Ainda somos capazes de criar, improvisar e fazer novas mentes decidirem por si?
A arte médica é desconfortável. O entretenimento, não. Seria ótimo se pudéssemos negar zonas de conforto e preparar mentes para o inesperado. Chega de transformar falas em verdades. Criemos mapas mentais que compreendam processos e fomentem a investigação livre e a troca aberta de ideias. O problema não é a IA, é a perda da nossa autonomia diante dela.
O objetivo desse artigo de opinião é, através de um ponto de vista, considerar que embora a IA na prática médica traga benefícios, pode também apresentar prejuízos. Como, por exemplo, viés algorítmico, nebulosidade nas decisões, risco de escape de dados sensíveis, distanciamento das particularidades e uma preocupante capacidade de comprometer o julgamento crítico do ser-humano. A chamada caixa-preta da IA [5] dificulta a compreensão de como as decisões são tomadas, podendo dificultar a responsabilização ou resolução de problemas em caso de erros.
O objetivo deste artigo foi refletir, a partir de um ponto de vista, sobre os prejuízos que o uso crescente da Inteligência Artificial (IA) na prática médica pode trazer à autonomia profissional, ao pensamento reflexivo e à qualidade das interações clínicas.
O principal achado desta reflexão é que, embora a IA represente um avanço tecnológico inegável, seu uso indiscriminado pode comprometer habilidades fundamentais da prática médica como a escuta ativa, o raciocínio clínico e o julgamento moral. Assim, o artigo responde afirmativamente à questão que atravessa esta reflexão: sim, a incorporação acrítica da IA pode representar uma ameaça real ao exercício autônomo e reflexivo da medicina.
Esse alerta dialoga com autores que apontam para os limites e desafios da IA na prática clínica. Szolovits [1] já alertava, ainda na década de 1980, para o risco de dependência de sistemas de apoio à decisão diagnóstica, sobretudo quando utilizados de forma a substituir e não complementar a análise médica. Coiera [3], por sua vez, destaca que a tecnologia, quando não integrada de maneira ética e crítica, pode enfraquecer a tradição semiológica da medicina, minando o encontro clínico e favorecendo uma prática superficial, centrada apenas em dados. Esse esvaziamento do raciocínio clínico é agravado pela opacidade dos algoritmos, o que dificulta a compreensão e a responsabilização por decisões médicas, como apontam Jongsma et al. [5] e Karasinski & Candiotto [6].
Além disso, a literatura mais recente evidencia que os dados utilizados para treinar algoritmos refletem vieses históricos, raciais e socioeconômicos, o que pode reforçar desigualdades no acesso e na qualidade do cuidado médico. Schneider-Kamp & Askegaard [4] argumentam que o uso acrítico da IA corre o risco de institucionalizar injustiças já presentes no sistema de saúde. Nesse sentido, a promessa de precisão e eficiência da IA precisa ser equilibrada com uma visão crítica sobre os dados que a alimentam e os contextos nos quais ela é aplicada.
Outro ponto de convergência com a literatura diz respeito à formação médica. A substituição da formação baseada na dúvida, na escuta e no julgamento ético por um treinamento voltado apenas ao manuseio de ferramentas tecnológicas pode comprometer a complexidade da prática clínica. A IA, quando usada como autoridade máxima e não como ferramenta de apoio, fragiliza a autonomia e o senso de responsabilidade do profissional. Essa crítica se alinha ao que defende Lanzagorta-Ortega et al. [2], ao alertarem para o risco de se formar médicos técnicos, porém não reflexivos.
Apesar de ser um artigo opinativo e teórico, e não uma pesquisa empírica, este trabalho apresenta como limitação a ausência de coleta direta de dados qualitativos ou quantitativos. Ainda assim, seu valor está na potencialidade de provocar debate crítico e reflexivo entre profissionais da saúde e educadores. Como proposta de solução, sugere-se que a formação médica incorpore, desde os primeiros anos, conteúdos sobre ética digital, epistemologia médica e pensamento crítico, além da promoção de uma cultura de questionamento sobre o uso de tecnologias.
A IA deve ser tratada como aliada, nunca como substituta do pensamento humano e o maior desafio está em garantir que ela não nos leve a abrir mão daquilo que nos define como médicos e como seres humanos: a capacidade de pensar, escutar e julgar com empatia.
A introdução da Inteligência Artificial (IA) na medicina não deve ser entendida apenas como um avanço tecnológico, mas como um divisor de águas na prática clínica e na formação de profissionais. Se, por um lado, a IA oferece diagnósticos mais rápidos, por outro, ameaça a escuta ativa, o raciocínio clínico e o julgamento moral.
A dependência crescente de algoritmos fortalece um modelo biomédico centrado na doença, afastando-nos da abordagem biopsicossocial centrada na pessoa. A formação médica começa a negligenciar as humanidades em favor de competências técnicas imediatas e padronizadas.
É imperativo repensar a incorporação da Inteligência Artificial na medicina de forma ética, crítica e responsável. A tecnologia deve ser uma aliada da prática clínica, desde que guiada por princípios humanos sólidos, por uma formação comprometida com o pensamento reflexivo e por uma pedagogia que valorize a dúvida, a escuta e a singularidade de cada paciente.
Não se trata de rejeitar a inovação, tampouco de romantizar o passado. O desafio está em construir um ponto de encontro: médicos capazes de interpretar dados sem perder a sensibilidade clínica, que compreendam os limites dos algoritmos e que valorizem a complexidade da experiência humana.
Por fim, a pergunta que se impõe não é se a IA substituirá o médico, mas: o que restará da medicina se o médico abrir mão de pensar?
“De longe, o maior perigo da Inteligência Artificial é que as pessoas concluam muito cedo que a entendem.”
— Eliezer Yudkowsky
Conflitos de interesse
Os autores declaram não haver conflitos de interesse de qualquer natureza
Fontes de financiamento
Financiamento próprio.
Contribuição dos autores
Concepção e desenho da pesquisa: Orsini MA, Ghiggi MV, RG de Freitas M, Reis CHM, Araújo-Leite MA, Oliveira ASB, Armada L; Redação do manuscrito: Orsini MA, Ghiggi MV, RG de Freitas M, Reis CHM, Araújo-Leite MA, Oliveira ASB, Armada L; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Orsini MA, Ghiggi MV, RG de Freitas M, Reis CHM, Araújo-Leite MA, Oliveira ASB, Armada L.
Referências
1. Szolovits P. Artificial intelligence in medical diagnosis. Ann Intern Med [Internet]. 1 jan 1988 [citado 28 jun 2025];108(1):80. Disponível em: https://doi.org/10.7326/0003-4819-108-1-80
2. Lanzagorta-Ortega D, Carrillo-Pérez DL, Carrillo-Esper R. Inteligencia artificial en medicina: presente y futuro. Gac M Xico [Internet]. 21 dez 2022 [citado 28 jun 2025];158(91). Disponível em: https://doi.org/10.24875/gmm.m2200068
3. Coiera EW. Artificial intelligence in medicine: the challenges ahead. J Am Med Inform Assoc [Internet]. 1 nov 1996 [citado 28 jun 2025];3(6):363-6. Disponível em: https://doi.org/10.1136/jamia.1996.97084510
4. Schneider-Kamp A, Askegaard S. The limits of artificial intelligence: prospects and challenges in the clinical workplace. Curr Opin Epidemiol Public Health [Internet]. 24 dez 2024 [citado 28 jun 2025]. Disponível em: https://doi.org/10.1097/pxh.0000000000000046
5. Jongsma KR, Sand M, Milota M. Why we should not mistake accuracy of medical AI for efficiency. NPJ Digit Med [Internet]. 4 mar 2024 [citado 28 jun 2025];7(1). Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41746-024-01047-2
6. Karasinski M, Bez Birolo Candiotto K. AI’s black box and the supremacy of standards. Filos Unisinos [Internet]. 26 mar 2024 [citado 28 jun 2025];25(1):1-13. Disponível em: https://doi.org/10.4013/fsu.2024.251.13